sábado, 9 de julho de 2016

COLUNISTA VIP:

UM BOM PAR DE SAPATOS E UM 
                         CADERNO DE ANOTAÇÕES” (I)
Jeremias Macário


Como fazer uma reportagem
Uma viagem ao inferno dos deportados, dos condenados a trabalhos forçados, dos carcereiros, dos colonos e dos camponeses foi feita pelo médico e escritor Anton Tchékhov aos 30 anos à ilha Sacalina, na Sibéria Oriental, em 1890, durante o império russo tzarista.
  O recenseamento dos habitantes do local foi um pretexto que o autor aventureiro encontrou para realizar seu objetivo maior de escrever o livro “A Ilha de Sacalina”, do qual o prefaciador Piero Brunello fez uma seleção de textos que gerou “Um Bom Par de Sapatos e um Caderno de Anotações” - Como Fazer uma Reportagem.
  Como está explícito no subtítulo, o livro da editora Martins deve ser uma leitura de constante aprendizagem para estudantes de jornalismo, profissionais e pessoas interessadas no assunto porque oferece valiosas dicas e passos importantes de como observar os locais; tratar as fontes; e fazer uma entrevista para conseguir uma boa reportagem jornalística.

  Com o avanço tecnológico e o advento da internet, o título poderia ser atualizado para “Um Bom Par de Sapatos e um Gravador com uma Máquina Fotográfica”, se bem que ainda gosto do caderno de anotações. O conteúdo do livro permaneceria o mesmo.
  O jornalista para ser um bom repórter tem que gastar sola de sapato e não ficar enfurnado numa redação durante todo tempo diante de uma tela de computar usando aplicativos e e-mails para fazer uma reportagem. Tem que ser cético como Tchékhov. Para ele tudo era matéria e que fora dela não há verdade. O escritor Tolstói certa vez o definiu como ateu absoluto, mas excelente pessoa.
  Tchékhov em seus trabalhos definia o escritor não como um confeiteiro, mas como um repórter e perguntava: O que você diria de um repórter que por repulsa ou pelo desejo de satisfazer os leitores, descrevesse apenas prefeitos honestos, damas sublimes e ferroviários virtuosos? A indagação ainda é atual aos tempos de hoje.
  Em sua visão, um escritor deve retratar a vida tal como ela é na realidade, sabendo que as paixões más são tão inerentes à vida quanto as boas. Nelson Rodrigues com suas crônicas polêmicas que causaram escândalos na época deve ter bebido da fonte do russo-ucraniano.
  Numa comparação como médico disse sobre si mesmo que a medicina era sua esposa legítima e a literatura sua amante. “Tanto a anatomia como as letras têm a mesma origem nobre, os mesmo fins e o mesmo inimigo: o demônio, e não há razão nenhuma para se desligarem”.
    Em sua viagem por Sacalina atentou para as questões do meio ambiente e não poupou críticas à depredação da natureza com a chegada dos primeiros colonos e deportado. “As florestas não param de diminuir, os rios secam, os animais silvestres desapareceram, o clima piorou e a cada dia a terra torna-se cada vez mais pobre e mais árida”. São palavras ditas por um médico naquela época, final do século XIX.
  O livro é um poço de poesia e transborda quando o autor escreve esta oração dedicada à natureza: “Quando ouço farfalhar o jovem bosque, que plantei com minhas próprias mãos, sinto que tenho algum poder sobre a bondade do clima e que se daqui a mil anos o homem for feliz, terei contribuído um pouquinho para isso”.

A VIAGEM AO INFERNO


  Na abertura e no apêndice do livro, de reportagem prazerosa de ser ler, Piero Brunello nos conta que o ucraniano Tchékhov saiu da Rússia (Peterburgo) em 21 de abril de 1890. Percorreu a Sibéria em veículos de tração animal, balsas e barcos a vapor até chegar à ilha numa viagem de dois meses e meio. Foi como ter penetrado num inferno, conforme descreveu para seu editor Suvórin.
    Seu projeto, na verdade, começou no início de janeiro do mesmo ano num encontro com Gálkin-Vráski, diretor da administração carcerária a quem pediu um documento que o autorizasse visitar a ilha para fins literários e científicos. Nunca recebeu a autorização, mas Tchékhov viajou como correspondente do jornal de Suvórin.
  Na ida escolheu viajar por terra e demorou dois meses e meio, num percurso de 12 mil quilômetros. Seu editor emprestou-lhe dinheiro em troca de artigos para o jornal. Era como se toda a ilha estivesse ardendo. E tudo é envolto pela fumaça, como no inferno - escreveu ao seu editor logo nos primeiros dias da sua chegada.
    Nos artigos seguintes narra cenas de horror reportando que os condenados não se distinguiam dos colonos livres. Enfermarias e hospitais amontoavam doentes, fosse qual fosse a doença, junto com indivíduos que perdiam o juízo devido a insuportáveis condições de vida. Por toda parte o arbítrio, a injustiça. Aos culpados de infrações eram dadas de trinta a cem vergastadas – desabafa o médico-repórter.
    O recenseamento permitiu-lhe entrar nas habitações, nas casernas e nos cárceres e assim, encontrou-se com as pessoas; viu como viviam; e escutou suas histórias. Depois de três meses de pesquisas, Tchékhov voltou para casa navegando pelo mar do Japão e o Oceano Índico. Com seu estilo jornalístico primoroso de contar os fatos, durante todo esse tempo o leitor também viaja ao lado do autor.
  Antes e durante toda sua jornada, o pesquisador-jornalista escreve cartas para seu amigo Aleksei Suvórin, editor do periódico Nóvoie Vriémia relatando suas observações e dificuldades encontradas, especialmente quanto à censura da época tzarista. Entre críticas e elogios, um dos pontos importantes do seu trabalho é a descrição de cada fase das reportagens, como preparativos entre leituras e dúvidas, pesquisa de campo, coleta de dados e o momento de colocar em ordem documentos e anotações para começar a escrever.
  Numa de suas missivas para seu editor ele enfatiza que Sacalina é um lugar de sofrimentos intoleráveis, que só o ser humano, livre ou forçado, é capaz de suportar. De lá o autor pede livros para se inteirar mais da região como “A Sibéria e o Trabalho Forçado”, de Maksímov.
  Mesmo diante da degradação do ser humano, numa ilha suja, repleta de deportados e condenados a trabalhos forçados, o escritor reservas linhas poéticas que dão encanto ao local, às paisagens e o modo de viver de seus habitantes. No capítulo “Não Planejar Demais”, ensina que, às vezes, deixar nas mãos do acaso pode revelar-se útil, principalmente se o lugar é desconhecido. A orientação me fez lembrar das minhas lidas e caminhadas  como jornalista.
    Da ilha dos forçados, o farol de Aleksandrovsk, no seu sentir poético, contempla o mundo com seu olho vermelho. “Os forçados e os colonos, dia após dia, cumprem suas penas, enquanto os livres, desde manhã até a noite, não falam de outra coisa a não ser dos que foram açoitados, dos que escaparam, dos que foram presos e serão surrados; e o estranho é que em uma semana a gente se habitua a essas conversas e a esses interesses e, logo depois de acordar, antes de mais nada, vai atrás das ordens publicadas pelo general, o jornal diário do lugar, e daí passa o dia inteiro a ouvir e a falar de quem fugiu, de quem fuzilaram e assim por diante”.

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