“UM BOM PAR DE SAPATOS E UM CADERNO DE ANOTAÇÕES” (II - Final)
O FRIO E OS CASTIGOS FÍSICOS
Jeremias Macário
Em sua reportagem, Tchékhov descreve a solidão de Sacalina em tom
poético e melancólico como no trecho: “Os trabalhos forçados, mesmo à
luz dos fogos, continuam a ser o que são, e a música, quando ouvida de
longe por alguém que jamais voltará à terra natal, só desperta uma
saudade mortal”.
Sobre as prisões e o frio que ferem a alma, o
médico pesquisador cita num de seus escritos: “Dizem que em Sacalina o
próprio clima predispõe as mulheres à gravidez; mulheres idosas dão à
luz, mesmo aquelas que na Rússia eram estéreis e já tinham perdido a
esperança de ter filhos”. Mistérios da natureza e do tempo!
Conforme reporta, no sul da ilha os castigos físicos são mais frequentes
e chegam a açoitar até cinquenta homens por vez. Os livres não tiram o
chapéu para entrar nas casernas. Os forçados batem continência e tiram o
gorro ao passar pelos livres.
O escritor consegue driblar a
censura da época tzarista e denuncia em detalhes os sofrimentos
desumanos impostos aos detentos. Dos trabalhos, o forçado volta à prisão
para dormir com as roupas encharcadas e os calçados imundos; não há com
que se enxugar; parte das roupas é estendida ao lado das tarimbas,
sobre outra parte, sem deixá-la secar, ele se deita como que num
enxergão.
Sua roupa de baixo, impregnada de secreções cutâneas,
molhada e há muito tempo sem lavar que se mistura a sacos velhos e
trapos fétidos... E aí ele (o forçado) entra nas entranhas sujas das
migalhas de pão, dos percevejos esmagados entre os dedos, tudo isso
misturado a gases intestinais soltos pelos detentos.
Em meio a
tantas cenas de miséria e pobreza, Tchékhov conta a história de um homem
que optou por não trabalhar e cantar livremente. Foi posto a duros
castigos e depois dos açoites recebidos sempre exclamava que não iria
trabalhar. “Tentaram de tudo com ele e, por fim, desistiram. Agora
perambula por Due e canta.”
Ao descrever cenas alegres de uma
feira num distrito da ilha, de repente o escritor aparece desfazendo o
quadro idílico que vira fumaça quando são ouvidos ruídos insuportáveis
das correntes e os passos surdos dos presos. Ele chama Sacalina de
indigna ilha e lugar mais chuvoso da Rússia onde o tempo é deprimente e
interminável com pensamentos depressivos.
No seu texto-reportagem,
recomenda não protelar e escrever enquanto as impressões ainda estão
vivas. Em sua obra, o autor aproveita também para denunciar o
desmatamento e o assoreamento da ilha através do abate das florestas e a
construção de obras, serviços estes impostos aos forçados. No subtítulo
“Nada de Panegíricos”, Tchékhov recomenda “dizer as coisas como são,
citando dados de fato, para permitir a qualquer um a possibilidade de
formar uma opinião e expressar um julgamento”.
De Sacalina ele
relata o terror nas prisões onde o acusado permanece detido sem nenhuma
fundamentação. Cita o caso de um detido que recebeu cem vergastadas e
foi mantido no escuro, faminto, em estado de terror até confessar.
Descreve ainda a penitenciária como pardieiro com influência dos maus
sobre os bons. Nos alojamentos de bárbaros, como notifica, as moças de
15 anos são obrigadas a dormir ao lado de forçados. As mulheres são
tratadas com arrogância e desprezo. São várias as histórias de pessoas
maltratadas.
APÊNDICE
“Um Médico no Inferno” é o
título do Apêndice do livro escrito por Piero Brunello que faz uma
análise crítica de Anton Tchékhov citando que aos trinta anos ele
começava a ser um escritor de sucesso, antes de compor “Tio Vânia” e
outras obras teatrais. Sobre sua saúde debilitada, o autor escreve para
seu editor que no sangue que sai pela sua boca há algo de fatídico, como
no pôr-do-sol.
Piero destaca que Tchékhov era atacado pelos
críticos liberais da velha geração dos populistas que não o perdoavam
por escrever para Nóvoie Vriémia, um periódico conservador. Os críticos o
tinham como talento, mas censuravam-no por desperdiçá-lo em contos
curtos. Para eles, narrativas de poucas páginas contam apenas
acontecimentos banais.
Nikolai Mikhailóvski, expoente do populismo,
acusou Tchékhov de falta de ideias e de representar o tédio da década de
1880. Para ele, seus contos eram desumanos, longe das esperanças e das
lutas revolucionárias dos anos 60. Por sua vez, Tchékhov sempre deplorou
seus críticos e afirmava que não era liberal nem conservador, que não
fazia profissão de progressismo nem de indiferença, que não queria ser
outra coisa a não ser um artista livre.
Em 1890, um artigo
publicado na revista “Pensamento Russo” o acusou de ser indiferente às
questões sociais e políticas. Confessou que não fez nada pela
administração, pela liberdade de imprensa, mas nem mesmo a revista tinha
feito mais. “Nunca extorqui nada de ninguém. Não escrevi libelos, nem
denúncias, não adulei, não menti, não ofendi”. Diz Piero que Tchékhov se
esforçava mais para ser conhecido como médico do que como escritor.
Todas essas polêmicas contribuíram para sua decisão de fazer uma
pesquisa na ilha dos deportados que rendeu bom texto jornalístico. Com
relação às discussões sobre prisão e desterro, o escritor criticava que
não existiam estudos sérios, e desabafou que “os literatos falavam dos
camponeses morando na cidade”.
Quanto aos jornalistas, para ele
não dispunham de tempo, nem meios, nem liberdade de ação. “Chegam
correndo num lugar, farejam, escrevem e dão no pé”. Em suas cartas,
comentava que mal remunerado, o jornalista de um jornal galopa, galopa,
rogando a Deus que não impliquem com ele por suas involuntárias e
inevitáveis mentiras.
Mesmo confessando que não era um escritor de
denúncia, certa vez enviou uma carta ao seu editor afirmando que
Sacalina era o lugar dos mais intoleráveis sofrimentos que o ser humano é
capaz de suportar: “Deixamos apodrecer milhões de pessoas nas prisões,
deixamos apodrecer, sem razão, de maneira bárbara; fizemos pessoas
algemadas correr no frio dezenas de milhares de verstas; transmitimos
sífilis, corrompemos, multiplicamos os criminosos, e tudo isso nós
imputamos aos carcereiros de nariz vermelho”.
quarta-feira, 13 de julho de 2016
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