quarta-feira, 13 de julho de 2016

COLUNISTA VIP:

“UM BOM PAR DE SAPATOS E UM CADERNO DE ANOTAÇÕES” (II - Final)

O FRIO E OS CASTIGOS FÍSICOS


 Jeremias Macário
 Em sua reportagem, Tchékhov descreve a solidão de Sacalina em tom poético e melancólico como no trecho: “Os trabalhos forçados, mesmo à luz dos fogos, continuam a ser o que são, e a música, quando ouvida de longe por alguém que jamais voltará à terra natal, só desperta uma saudade mortal”. 
Sobre as prisões e o frio que ferem a alma, o médico pesquisador cita num de seus escritos: “Dizem que em Sacalina o próprio clima predispõe as mulheres à gravidez; mulheres idosas dão à luz, mesmo aquelas que na Rússia eram estéreis e já tinham perdido a esperança de ter filhos”. Mistérios da natureza e do tempo!
  Conforme reporta, no sul da ilha os castigos físicos são mais frequentes e chegam a açoitar até cinquenta homens por vez. Os livres não tiram o chapéu para entrar nas casernas. Os forçados batem continência e tiram o gorro ao passar pelos livres.
  O escritor consegue driblar a censura da época tzarista e denuncia em detalhes os sofrimentos desumanos impostos aos detentos. Dos trabalhos, o forçado volta à prisão para dormir com as roupas encharcadas e os calçados imundos; não há com que se enxugar; parte das roupas é estendida ao lado das tarimbas, sobre outra parte, sem deixá-la secar, ele se deita como que num enxergão.
  Sua roupa de baixo, impregnada de secreções cutâneas, molhada e há muito tempo sem lavar que se mistura a sacos velhos e trapos fétidos... E aí ele (o forçado) entra nas entranhas sujas das migalhas de pão, dos percevejos esmagados entre os dedos, tudo isso misturado a gases intestinais soltos pelos detentos.
  Em meio a tantas cenas de miséria e pobreza, Tchékhov conta a história de um homem que optou por não trabalhar e cantar livremente. Foi posto a duros castigos e depois dos açoites recebidos sempre exclamava que não iria trabalhar. “Tentaram de tudo com ele e, por fim, desistiram. Agora perambula por Due e canta.”

    Ao descrever cenas alegres de uma feira num distrito da ilha, de repente o escritor aparece desfazendo o quadro idílico que vira fumaça quando são ouvidos ruídos insuportáveis das correntes e os passos surdos dos presos. Ele chama Sacalina de indigna ilha e lugar mais chuvoso da Rússia onde o tempo é deprimente e interminável com pensamentos depressivos.
  No seu texto-reportagem, recomenda não protelar e escrever enquanto as impressões ainda estão vivas. Em sua obra, o autor aproveita também para denunciar o desmatamento e o assoreamento da ilha através do abate das florestas e a construção de obras, serviços estes impostos aos forçados. No subtítulo “Nada de Panegíricos”, Tchékhov recomenda “dizer as coisas como são, citando dados de fato, para permitir a qualquer um a possibilidade de formar uma opinião e expressar um julgamento”.
  De Sacalina ele relata o terror nas prisões onde o acusado permanece detido sem nenhuma fundamentação. Cita o caso de um detido que recebeu cem vergastadas e foi mantido no escuro, faminto, em estado de terror até confessar. Descreve ainda a penitenciária como pardieiro com influência dos maus sobre os bons. Nos alojamentos de bárbaros, como notifica, as moças de 15 anos são obrigadas a dormir ao lado de forçados. As mulheres são tratadas com arrogância e desprezo. São várias as histórias de pessoas maltratadas.

  APÊNDICE

  “Um Médico no Inferno” é o título do Apêndice do livro escrito por Piero Brunello que faz uma análise crítica de Anton Tchékhov citando que aos trinta anos ele começava a ser um escritor de sucesso, antes de compor “Tio Vânia” e outras obras teatrais. Sobre sua saúde debilitada, o autor escreve para seu editor que no sangue que sai pela sua boca há algo de fatídico, como no pôr-do-sol.
  Piero destaca que Tchékhov era atacado pelos críticos liberais da velha geração dos populistas que não o perdoavam por escrever para Nóvoie Vriémia, um periódico conservador. Os críticos o tinham como talento, mas censuravam-no por desperdiçá-lo em contos curtos. Para eles, narrativas de poucas páginas contam apenas acontecimentos banais.
Nikolai Mikhailóvski, expoente do populismo, acusou Tchékhov de falta de ideias e de representar o tédio da década de 1880. Para ele, seus contos eram desumanos, longe das esperanças e das lutas revolucionárias dos anos 60. Por sua vez, Tchékhov sempre deplorou seus críticos e afirmava que não era liberal nem conservador, que não fazia profissão de progressismo nem de indiferença, que não queria ser outra coisa a não ser um artista livre.
  Em 1890, um artigo publicado na revista “Pensamento Russo” o acusou de ser indiferente às questões sociais e políticas. Confessou que não fez nada pela administração, pela liberdade de imprensa, mas nem mesmo a revista tinha feito mais. “Nunca extorqui nada de ninguém. Não escrevi libelos, nem denúncias, não adulei, não menti, não ofendi”. Diz Piero que Tchékhov se esforçava mais para ser conhecido como médico do que como escritor.
  Todas essas polêmicas contribuíram para sua decisão de fazer uma pesquisa na ilha dos deportados que rendeu bom texto jornalístico. Com relação às discussões sobre prisão e desterro, o escritor criticava que não existiam estudos sérios, e desabafou que “os literatos falavam dos camponeses morando na cidade”.
  Quanto aos jornalistas, para ele não dispunham de tempo, nem meios, nem liberdade de ação. “Chegam correndo num lugar, farejam, escrevem e dão no pé”. Em suas cartas, comentava que mal remunerado, o jornalista de um jornal galopa, galopa, rogando a Deus que não impliquem com ele por suas involuntárias e inevitáveis mentiras.
  Mesmo confessando que não era um escritor de denúncia, certa vez enviou uma carta ao seu editor afirmando que Sacalina era o lugar dos mais intoleráveis sofrimentos que o ser humano é capaz de suportar: “Deixamos apodrecer milhões de pessoas nas prisões, deixamos apodrecer, sem razão, de maneira bárbara; fizemos pessoas algemadas correr no frio dezenas de milhares de verstas; transmitimos sífilis, corrompemos, multiplicamos os criminosos, e tudo isso nós imputamos aos carcereiros de nariz vermelho”. 

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